AASP REAGE
Aasp critica abuso de
autoridade contra advogados
A Associação dos Advogados de
São Paulo (Aasp) divulga, no boletim da próxima semana, editorial em que
repudia o abuso de autoridade contra advogados.
O fato que suscitou a abordagem do tema foi a prisão do advogado José
Roberto Leal de Carvalho, que ficou algemado por quatro horas nº 4º Distrito
Policial, a mando da delegada Henriqueta Caruso.
"Não é possível que fatos como esse ainda ocorram, mais de quinze anos
após o fim do regime militar e passados quase treze anos da promulgação da
Constituição", afirma o editorial.
Veja, na íntegra, o texto que será divulgado pela Aasp.
Advocacia algemada: atentado à Democracia.
"Final de agosto de 1980, o professor Goffredo da Silva Telles Júnior
entrou para o que seria mais uma aula ministrada aos acadêmicos do 1º ano na
Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco. O Mestre, porém,
comunicou que não haveria aula; não discorreria, naquele dia, sobre os
conceitos de introdução à ciência do direito. E explicou: a sede da Ordem
dos Advogados do Brasil, então no Rio de Janeiro, sofrera um atentado com a
explosão de uma carta-bomba endereçada ao seu presidente, a qual, porém,
atingiu mortalmente a secretária dele, Sra. Lyda Monteiro da Silva.
Tomado de ira sagrada, mestre Goffredo perguntou se os alunos sabiam por quê
era o presidente da OAB o destinatário do explosivo. E respondeu ele mesmo:
pela mesma razão pela qual haviam sido presos, em abril daquele mesmo ano,
dois eminentes advogados paulistas, um dos quais também professor ali na
Faculdade de Direito. Porque - prosseguiu Goffredo, numa de suas mais belas
aulas - os advogados são a ponta-de-lança da sociedade na luta pela
liberdade, e por isso aqueles que querem manter a ditadura iniciada com o
golpe militar de 1964 precisam calar os advogados, amordaçar e destruir a
Advocacia.
Por isso, concluiu o Mestre, os estudantes dever-se-iam reunir em assembléia,
para discutir formas de protestar contra aquele atentado, e de exigir a
instauração do Estado Democrático de Direito.
Veio a redemocratização do Brasil, veio uma Constituição chamada Cidadã,
e os advogados continuaram a sofrer as agruras de enfrentar desmandos, que ora
eram praticados por aqueles que ainda não se haviam libertado dos resquícios
do regime autoritário, e noutras vezes, paradoxalmente, eram perpetrados
pelos que se diziam defensores da democracia, da vontade do povo. Tem sido
assim, então, que os advogados se deparam com o arbítrio em CPIs, em órgãos
do Ministério Público, às vezes no Poder Judiciário, e também nas
diversas unidades policiais.
A Associação dos Advogados de São Paulo, sempre que toma conhecimento de
agressão às prerrogativas da profissão, aos direitos de advogados e às
garantias fundamentais, insurge-se e exige providências das autoridades
competentes. Como fez durante a ditadura militar, quando se alinhou às demais
entidades de advogados e a outros segmentos da sociedade civil para pugnar
pelo respeito à dignidade humana. Infelizmente, há sempre um novo caso de
abuso, a ensejar pronta manifestação da AASP; infelizmente também, nem
sempre a resposta é tão pronta e satisfatória, e às vezes nem mesmo há
resposta das autoridades às quais são solicitadas providências.
Talvez por isso - pela falta de medidas concretas por parte de quem tem o
dever de adotá-las - é que tenhamos chegado ao episódio ocorrido no dia 22
de julho, no interior do 4º Distrito Policial: a prisão de um dos mais
respeitados advogados criminais de São Paulo, que ali comparecera para
atender a chamado de pessoa envolvida em fatos tidos por caracterizadores de
crime de desobediência.
Impedido de acompanhar a lavratura do "termo circunstanciado", o
advogado recusou-se depois a fornecer seu documento à autoridade policial,
que pretendia fazer constar a presença dele durante a realização daquele
ato que não presenciara. Por não aceitar chancelar a ilegalidade praticada
pela Delegada de Polícia, o advogado foi preso e algemado ao braço de uma
cadeira, assim permanecendo por cerca de quatro horas; de nada valeram os
protestos de outros advogados que lá estiveram, e demonstravam que a situação
retratava abuso inominável.
A coação perdurou mesmo após retiradas as algemas, pois o advogado ainda
assim não pôde deixar a unidade policial, o que somente ocorreu muito tempo
depois, não sem antes novas ameaças de ser outra vez submetido à absurda e
injustificável prisão. Tudo isso em julho de 2001, nº 4º Distrito Policial
da Capital de São Paulo, com um conhecido e renomado advogado.
Não é possível que fatos como esse ainda ocorram, mais de quinze anos após
o fim do regime militar e passados quase treze anos da promulgação da
Constituição, cujo art. 1º proclama constituir-se a República Federativa
do Brasil em Estado Democrático de Direito e ter como fundamentos, dentre
outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. É inadmissível que, na
vigência desse Estado Democrático de Direito, um advogado seja submetido a
tamanha violência, a tanto constrangimento, a humilhação sem-conta, como
nem mesmo durante o regime militar se tem notícia de ter ocorrido com
advogado no exercício de suas funções.
A Associação dos Advogados de São Paulo vai adotar todas as providências
que estiverem dentro de sua esfera de atuação para que os fatos sejam
rigorosamente apurados, e os seus autores responsabilizados na forma da lei.
Além disso, concita todas as autoridades a refletirem sobre a gravidade do
episódio, e o risco que ele implica à democracia conquistada com tanto
sacrifício.
Conclama, também, todos os policiais a se alinharem com o Direito, não com o
abuso; a se fazerem defensores da Constituição e das Leis, e não atentarem
contra elas; a demonstrarem que a Instituição não aceita sujar-se na lama
do arbítrio para justificar o desvio praticado por alguns de seus membros.
É preciso, afinal, que não se admita, em hipótese nenhuma, o retrocesso a
uma época da qual somente se deve lembrar como exemplo a não ser seguido. É
preciso proclamar, em alto e bom som, que somos operadores do Direito, não
agentes ou objetos do desmando; que o Estado Democrático de Direito precisa
ser consolidado entre nós, para que sejam definitivamente afastados os métodos
utilizados pelos esbirros do regime de exceção, o qual deve ser de uma vez
por todas lançado ao lixo da história."
Revista Consultor Jurídico, 26 de agosto de 2001.